Mesmo entre os maiores estudiosos de ecologia ou teoria queer, é raro que essa intersecção seja conhecida ou comentada. Mas isso não torna a Ecologia Queer menos interessante, nem menos relevante!
Mas, calma! Pode ser que você não saiba nem o que é queer, nem o que a ecologia defende mesmo.
Por isso, vamos dar um passo de cada vez. São muitas informações novas! O importante é ter a mente aberta pra aprender 😉
O que é “queer“?
O termo “queer” vem da língua inglesa e significa “estranho”, “esquisito”.
Há algumas décadas, ele era usado para designar pejorativamente homossexuais, pessoas trans e, via de regra, pessoas que não estivessem alinhadas às normas cisgênero e heterossexuais. Sendo as pessoas cis quem têm sua identidade correspondente ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento.
Com os crescentes movimentos por direitos da comunidade LGBTQIA+, especialmente a partir do final dos anos 1960, o termo queer passou a ser apropriado pela própria comunidade para se autorreferir e como motivo de orgulho.
E é também esse termo que passou a definir as correntes na academia e nas artes que se debruçavam sobre essa comunidade e suas histórias.
Daí vêm as ramificações artísticas, como:
- Cinema queer
- Literatura queer
- Artes visuais queer etc.
E também as vertentes teóricas do seu estudo no campo da história, sociologia, antropologia, filosofia, biologia, entre outros.
O que a teoria queer propõe?
Existem inúmeras vertentes e ramificações da teoria queer.
Mas como a ideia aqui é simplificar, em linhas gerais, um dos fundamentos dos princípios da teoria (e da metodologia) queer é a abordagem de conceitos e estruturas construídas, e em muitas ocasiões naturalizadas, com um grau de suspeita e questionamento, sempre buscando entender por quem e pra quê esses conceitos foram criados.
Alguns dos casos mais frequentemente mencionados e analisados por pessoas estudiosas até hoje são obras como A História da Sexualidade, de Michel Foucault, e Problemas de Gênero, de Judith Butler, mas a lista vai longe!.
Nessas obras, tanto Foucault, quanto Butler encaram os conceitos de homossexualidade de uma maneira um tanto diferente: não perguntam “de onde surgiu a homossexualidade?” mas, ao contrário “de onde surgiu a heterossexualidade?”.
Isso porque um conceito como a homossexualidade só poderia surgir em oposição a uma norma, em desvio a uma norma que seria a heterossexualidade. Portanto, ela só pode ter origem na criação da própria heterossexualidade.
Homossexualidade e heterossexualidade
Pra não complicar muito, basta dizer que a homossexualidade não surge como um desvio. Mas é construída como um desvio em função da necessidade da construção de uma norma. E nenhuma das duas coisas, portanto, são inerentes ou “naturais”.
Da mesma forma, Foucault, Butler e muitas outras pessoas argumentam que as definições estritas de gênero, junto a seus significantes de comportamento e de aspectos físicos, foram construídas e impostas para atribuir coerência à própria noção de heterossexualidade.
Afinal, só pode existir heterossexualidade se só existirem dois gêneros com duas funções muito bem delimitadas, em um processo que buscava naturalizar essa construção. Ou seja, dar a essa imposição a sensação de que é intrínseca, essencial à sociedade como um todo.
E é talvez na oposição a essas noções binárias e essencialistas (que ao mesmo tempo delimitam, impõem e naturalizam construções sociais) que poderíamos sugerir um elemento comum a grande maioria das vertentes da teoria queer.
Teoria queer, feminismo e outras causas
Butler expande essa crítica mesmo a algumas vertentes do feminismo, em especial do feminismo radical que, a despeito de advogar pelos direitos das mulheres, se atém ainda na definição binária e restrita de homem x mulher (cis).
Muitas vezes isso excluía ou não identificava pessoas consideradas socialmente fora desses extremos do espectro. Ou ainda não considerava as implicações de interseccionalidades para as relações de poder internas.
Assim, a teoria queer identifica os problemas das opressões e das desigualdades em uma camada mais profunda, além da constatação de que as desigualdades existem. Isso na busca de identificar a maneira como as estruturas binárias e essencialistas são construídas, justamente com o fim de impor mecanismos de poder e ao mesmo tempo escondê-los sob o véu de uma suposta “naturalidade” desses conceitos.
A partir disso, tende a partir para uma abordagem mais abrangente e menos delimitadora de conceitos como gênero, buscando incluir outras expressões de divergências da norma e contemplar as implicações que a interação entre diferentes “desvios” (de raça, orientação sexual, identidade de gênero, origem, religião etc) proporciona.
Ou seja, a teoria queer busca uma observação mais abrangente, múltipla e diversificada, e uma defesa por direitos, por consequência, também mais inclusiva e diversa.
O que é a Ecologia Queer?
Tá bom, mas o que é que tudo isso tem a ver com ecologia?
Diferente do que muita gente acha, a ecologia e os movimentos pela conservação do planeta são bastante diversificados. Além disso, eles se desenvolveram e mudaram ao longos dos anos.
E há algum tempo, princípios da teoria queer passaram a ser considerados pra abordar também a nossa relação com a natureza. É dessa união que temos a chamada Ecologia Queer.
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Movimentos ecológicos já reforçaram padrões sociais
Mas os movimentos ecológicos também tiveram um passado bastante nebuloso. E os esforços pra fazer com que muitas dessas concepções equivocadas fossem abandonadas merecem a nossa atenção.
Um dos primeiros grandes marcos na história do movimento de conservação e na história da preocupação ecológica foram os esforços de membros da aristocracia estadunidense entre o fim do século XIX e o início do século XX.
Eles tinham entre um dos principais propósitos a defesa dos bisões na busca de impedir sua extinção. O problema é que a motivação não era sempre a mais nobre. Havia uma noção bastante enraizada de que o homem era responsável pela manutenção e pela seleção de quais espécies conservar e defender.
Além do mais, havia uma clara preferência nesses movimentos pela defesa de espécies de animais e plantas considerados nobres, grandiosos, em detrimento de espécies consideradas por eles de menor significância.
E essa escolha, pra piorar, muitas vezes estava atrelada a um especial apreço por espécies de árvores e plantas que constituíam uma espécie de “memória” e “essência” nórdica.
Um dos grandes aliados e representantes desse movimento inicial, Madison Grant, ficou mais conhecido ainda por um livro chamado (em tradução livre) A Perda da Grande Raça, ou a Base Racial da História Europeia. Precisa falar mais?
Em resumo, esse movimento, ainda que tenha contribuído para os primeiros passos na preservação de espécies e no estabelecimento de áreas de proteção, tinha ainda na sua motivação a noção de uma espécie de “dever divino” da espécie humana (mais especificamente, do homem branco de origem nórdica) de controlar o mundo natural e proteger as espécies que, a seu ver, mereciam ser protegidas.
E tudo isso, claramente, era restrito por um enorme filtro de racismo e até de teorias de eugenia, que não levaram muito tempo pra saltar de seres não humanos para seres humanos, com a aplicação na época de legislação anti-imigração, a busca pelo controle de natalidade de populações mais pobres ou “racialmente inferiores” e políticas higienistas em geral.
Ecofeminismo e novas vertentes interseccionais
Que bom que o movimento evoluiu, né?
O desenvolvimento e o aprofundamento dos estudos nas ciências biológicas e sociais ao longo dos anos foram desbancando e deslegitimando muitos desses princípios que “filtravam” a ecologia e os movimentos de conservação ambiental.
Um pouco mais recentemente, com a ascensão do movimento feminista e da sua teorização nos anos 1960, surgiu também uma nova vertente do feminismo chamada de ecofeminismo.
A vertente se subdividiu, ramificou e gerou uma outra série de vertentes e aprofundamentos teóricos próprios, alguns dos quais se vinculam inclusive fortemente ao que pode ser denominado Ecologia Queer.
Em resumo, podemos dizer que fundamentalmente o ecofeminismo busca explorar as origens e as repercussões políticas, sociais e culturais de um vínculo existente, sob o olhar masculino, entre as noções de natureza e de mulher enquanto elementos passivos, misteriosos e sujeitos à exploração e domínio do homem “racional e civilizatório”. E, a partir disso, subverter essa relação e reivindicar mudanças nessa percepção e nos modelos políticos e comportamentais de opressão fundamentados nela.
Um aspecto problemático de algumas vertentes desse movimento, que tendem a flertar com o feminismo radical, são as propostas de subversão na relação homem x natureza apenas do ponto de vista hierárquico, mas sem a problematização do binário. Ou seja, apenas colocando em cheque as relações de poder pressupostas por essa dinâmica, afirmando uma maior autonomia das mulheres e da natureza, mas não rompendo com um suposto vínculo “essencial e natural” entre a mulher e a natureza.
O problema dessa proposta é que acaba caindo mais uma vez na falácia do essencialismo e da restrição da feminilidade ou do ser mulher a aspectos anatômicos e biológicos que, além disso, pautariam a sua “relação especial” com a natureza. E o que é ainda pior, mais uma vez reforçando os mecanismos de naturalização de uma divisão binária e restrita de gênero.
Acabam excluídas aqui não só mulheres trans como todas as pessoas no espectro não-binário e é colocada em cheque a masculinidade dos homens trans. Enfim, um problemão, né?
Do Ecofeminismo para Ecologia Queer
É aí que chegamos às subdivisões mais recentes do ecofeminismo e da teoria queer que culminaram no que chamamos de Ecologia Queer.
Em resumo, ela explora de maneira mais abrangente a forma como essas falsas dicotomias das construções de homem x natureza, assim como do próprio binário essencialista homem x mulher, foram construídas a partir do ponto de vista de um homem (cis, hetero e branco) que se encarava enquanto domador da natureza, que era vista uma fonte passiva de recursos a ser controlada e dominada.
Já notou que é muito mais comum vermos mulheres envolvidas em ecologia do que homens? Não é por alguma “característica inerente” da masculinidade, como já vimos aqui. Mas sim porque o ideal de masculinidade é há muito tempo associado a essa postura de dominação e controle dos corpos, dos comportamentos e também da natureza.
A Ecologia Queer tenta mostrar que não somos tão diferentes assim nem das outras pessoas nem dos outros seres vivos, muito menos tão separados assim da natureza. E que devemos encarar o ambiente em que vivemos não como uma mera fonte de recursos, mas como um mundo enorme, rico e extremamente diverso!
Ou seja, assim como não se sustenta de verdade esse binário homem x mulher rígido e essencialista, e gênero se revela na verdade um espectro muito mais complexo e diversificado, as divisões supostamente radicais entre o ser humano e os outros seres vivos também não são tão simples e diretas assim.
E da mesma forma que o respeito e a consideração deve ser buscada em relação a todas as pessoas, também deveríamos buscar uma abordagem mais cuidadosa para os outros seres vivos e o ambiente que habitamos.
Diferentemente do que há muitos anos se buscava afirmar, natureza não é tão direta, simples e estranhamente restrita a dinâmicas de poder e gênero tão semelhantes ao que se alegava ser o “natural” e o jeito que “as coisas são”.
A natureza é muito mais complicada, intrincada e cheia de peculiaridades que só estamos começando a descobrir e que se revelam mais e mais instigantes a cada dia. Gênero, sexualidade, natureza, e as relações entre todos eles, são muito mais diversas do que alguns gostariam que fosse.
Mudar a nossa percepção dessas dicotomias e das estruturas de poder e opressão que elas fundamentam é antes de tudo uma mudança na nossa maneira de encarar o mundo. E da forma como nos relacionamos com ele.
Vem fazer parte dessa mudança!
Texto por André Fernandes.
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